*Verus philosophus est amator Dei - Santo Agostinho

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O ESCRITOR JORGE AMADO TORCIA PELO BANGU


Em 1985, Jorge Amado (1912-2001) foi convidado pela Revista Placar a escrever algumas palavras sobre o clube do coração, que havia acabado de perder a final do Campeonato Brasileiro para o Coritiba. A foto é de Álvaro Teixeira e foi republicada no ótimo site Bangu.net . Com vocês, Jorge Amado.
"Eu sou um velho torcedor do Bangu. Logo que cheguei ao Rio de Janeiro, um grande jogador despontava, justamente lá: Domingos da Guia. Ele era a sensação da época. Sou muito de acompanhar a carreira de craques e comecei a ir aos jogos do Bangu. Além disso, é um clube proletário, um clube dos operários. Aquela fábrica de tecidos, daquele bairro tão popular que é Bangu. E um time do povo, no sentido do povo trabalhador.
Fiquei contente e triste ao mesmo tempo com o desfecho do Campeonato Brasileiro de futebol. De um lado, estou contente porque o Bangu fez uma campanha excelente até chegar à decisão: pelo que ouvi falar, creio que não houve nenhum outro time com mais bonito estilo de jogo. E é claro que estou triste por ele ser apenas o vice-campeão. Mas o Bangu é assim mesmo: um time há muito tempo à procura de títulos. Se eu tivesse de deixar uma mensagem ao pessoal do clube seria para que não se deixasse entregar ao desânimo e à tristeza. O negócio é ir para a frente.
Gostaria de deixar claro meu absoluto repúdio a estas decisões por pênaltis. Se deu empate, então que se marcasse uma outra partida para o domingo seguinte. Porque, no fundo, existe uma enorme frustração. Duvido que o torcedor do Coritiba esteja inteiramente satisfeito. Ele está contente com o título, mas não com a forma como ele foi conquistado. Empatou? Um outro jogo lá em Curitiba. Já imaginaram essa final lá no Paraná? A beleza de um estádio lotado, com o Coritiba sagrando-se campeão vencendo o jogo? O título teria outro sabor. Seria uma decisão mais brasileira - quer dizer, mais bonita.
É isso. A gente está sentindo que falta ultimamente um jeito brasileiro de se jogar futebol. O futebol no nosso país, ao lado da capoeira, sempre foi uma arte. Em ambos, o brasileiro se exprime maravilhosamente. A capoeira nasceu nas senzalas, uma herança dos escravos que se tomou uma das mais belas criações do gênio artístico nacional. Igualmente, o futebol é um balé - desde que, repito e carrego na ênfase, seja jogado à maneira brasileira. E o que é isso? É difícil de se definir. É... uma arte. Porque nem sempre o futebol é arte. Aqui na Europa, por exemplo. Às vezes é um esporte violento.
Às vezes, o que se vê é uma forma defensiva de disputa visando apenas ganhar o jogo. O futebol é arte quando jogado possessivamente. E um esporte para se fazer gols. E para se tomar gols, também - e por que não? Quando você joga para não fazer gols, você abandona a arte. Abandona mesmo o princípio maravilhoso desse espetáculo, o que lhe dá grandeza.
Por isso volto ao exemplo do Bangu: é lá que se tem jogado o futebol realmente brasileiro. Tem um técnico excelente - Moisés, que foi um grande jogador - que se revela de muita competência, a quem mando meus parabéns. E tem uma meninada muito boa.
Já vi jogar Marinho, que é um craque (prefiro deixá-lo como exemplo para não cometer injustiças, com os demais). Uma ressalva: cumprimento também o pessoal do Coritiba que chegou ao título. Só que a campanha do Bangu foi uma campanha superior. O que eu senti no Bangu foi um trabalho feito com seriedade. Trabalho de homens devotados, como Castor de Andrade. Ele é um apaixonado: briga, bota dinheiro, comete injustiças, entra correndo em campo e coisas assim. Ele formou uma equipe de jovens, que, exatamente por não estarem nos grandes clubes, sem estrelismos, estão jogando um futebol muito solto.
Esse time não se dispersou em individualidades. Concentrou-se num todo, num jogo profundamente coletivo. Além do mais, o Bangu é o próprio bairro onde tem fincadas suas raízes. Veja o Botafogo: era um clube que se identificava com os moradores do bairro. De repente se mudou para o subúrbio. Já não era a mesma coisa. Você tem a impressão de que passa a faltar algo. O que falta é o bairro, o calor da vizinhança - mesmo que mantenha a fidelidade de velhos torcedores, como João Saldanha, Sandro Moreyra, Alfredo Machado...

Às vezes, são esses pequenos detalhes que passam despercebidos que fazem a diferença da vitória e da derrota. Outras vezes, nem isso: por que, por exemplo, perdemos a Copa de 1982, na Espanha? Por pura infelicidade contra a Itália, só isso - assim como o Bangu foi infeliz com o Coritiba. Muitos me falam que contra os italianos entramos em campo de salto alto. É possível, não sei. Só sei que o brasileiro, nessa hora, não é de fazer isso, não. Veja o caso do Joaquim Cruz, um exemplo do que é capaz um brasileiro. E maravilhoso: um menino que veio de lá de baixo, que veio do povo, que batalhou e está vencendo.
Isso é bom e ao mesmo tempo um reconforto para o povo brasileiro, tantas vezes xingado, humilhado e de quem se diz não ser capaz disto ou daquilo. Que é preguiçoso e outras coisas miseráveis. Esse rapaz é o símbolo exatamente da força, da energia, da coragem desse povo. É o talento e a maneira de ser do brasileiro. Essa deliciosa malícia, fruto da mistura de sangues que dá esse tipo de personalidade exclusivamente nossa. Isso você não vê só no esporte, mas também na nossa vida cultural. Uma mistura de cultura, uma cultura mestiça. Uma mistura capaz de dar um Pelé, um Garrincha. E que, quando é levada devidamente a sério, nos toma quase imbatíveis."
Fonte:Augusto Junior,blog toque-esportivo.blogspot.com

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